whatsapp

Avaliação do Ciclo de Vida de serviços digitais

07/10/2020

Transformação digital foi o tema central do 73º Fórum de Discussão sobre Avaliação do Ciclo de Vida (ACV), realizado no final de 2019 na Suíça, cujo relatório foi publicado recentemente na International Journal of LCA. Todas as apresentações e suas discussões durante o fórum mostraram a alta relevância ambiental da transformação digital global.

Enfatizaram-se, em particular, os impactos ambientais causados pela fabricação de dispositivos eletrônicos e seus componentes na Ásia, incluindo a demanda por várias matérias-primas, bem como a demanda de energia para operar a infraestrutura global da Internet. As discussões também revelaram a etapa de fabricação domina os impactos ambientais, uma vez que a capacidade computacional excede em muito seus requisitos reais. Isso é amplificado por um número ainda crescente de dispositivos diferentes que um único usuário final possui. No entanto, isso se aplica apenas a usuários finais. No caso de provedores de serviços em nuvem cujos servidores operam com capacidade quase total, o consumo de energia dos servidores durante a fase de uso é de longe o fator mais relevante.

Dentre os estudos apresentados durante o Fórum, selecionamos o trabalho conduzido por Preist, Schien e Shabajee da Universidade de Bristol, os quais estimaram as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) associadas ao uso do YouTube durante o período de um ano (2016), com base na Avaliação ou Análise do Ciclo de Vida.

Ao analisarem as diretrizes vigentes para inventários corporativos de emissões de GEE, os pesquisadores notam o incentivo a princípios de design sustentável (green design) nos produtos físicos, mas não em serviços digitais. Assim, eles apontam que a metodologia atual de quantificação de emissões GEE (GHG Protocol) é inadequada para os prestadores de serviços digitais. A seguir vamos entender os motivos que justificam essa inadequação apontada por eles.

De acordo com o GHG Protocol as emissões de GEE de uma companhia são classificadas em três escopos, a saber: Escopo 1 – emissões diretas resultantes das atividades da companhia; Escopo 2 – emissões resultantes da aquisição de energia, e Escopo 3 - todas as emissões indiretas (não incluídas no Escopo 2) que ocorrem na cadeia de valor da companhia, incluindo as emissões a montante e a jusante.

Diferentemente dos Escopos 1 e 2, a divulgação do Escopo 3 não é mandatória. A motivação para relatar o Escopo 3 é que, embora a empresa não seja diretamente responsável por essas emissões, suas políticas e decisões têm efeito sobre elas. Portanto, pode influenciá-las e potencialmente reduzi-las.“Uso de bens e serviços vendidos” é uma categoria de emissões do Escopo 3 de particular relevância para o tema em questão. O GHG Protocol afirma que: “Se o consumo de combustível fóssil ou eletricidade for necessário para o uso dos produtos comercializados pela companhia, as emissões da fase de uso do produto podem ser uma categoria relevante a relatar. Isso pode ser especialmente importante se a empresa puder influenciar os atributos de design do produto (por exemplo, eficiência energética) ou o comportamento do cliente de forma a reduzir as emissões de GEE durante o uso dos produtos.”

Para software e serviços digitais, há uma barreira adicional a ser superada: a orientação do Escopo 3 pressupõe um produto físico, como uma TV ou um carro. Não fornece orientação sobre como relatar as emissões associadas à distribuição e uso de um serviço digital. Portanto, do ponto de vista do GHG Protocol, tais emissões não precisam ser consideradas atualmente. Como consequência, os provedores de serviços digitais não as relatam como parte de seu Escopo 3

.

Observe, por exemplo, a resposta do Alphabet (Google) ao CDP (Carbon Disclosure Project) de 2016: “We have minimal downstream transportation and distribution activities, given that our business involves minimal physical delivery of any products or services. As a result, any associated emissions are de minimis in size.” (...) “Given the small size of our product portfolio, emissions associated with use of sold products are expected to be de minimis relative to our overall footprint.”

No entanto, a cadeia de valor corporativa a jusante associada a esses serviços está claramente envolta em emissões de GEE: a energia usada por equipamentos de rede, caches e dispositivos de usuário final para acessar e usar o serviço. Para um provedor de serviços digitais, este elo da cadeia pode representar parte significativa de suas emissões corporativas do Escopo 3. Um olhar mais holístico e o emprego de princípios de eco design podem, portanto, atenuar a magnitude destes. Por esse motivo, os autores do estudo acreditam que o GHG Protocol deva ser aprimorado para incentivar o relato das emissões do Escopo 3 associadas à entrega e ao consumo de serviços digitais, e para fornecer uma forma padrão de fazê-lo.

Então, vamos conferir os resultados do estudo de caso, cujo objetivo consistiu em estimar as emissões de GEE do Escopo 3 associadas com os serviços digitais promovidos pelo YouTube durante 2016 e, em seguida, avaliar as reduções possíveis, com base na ACV.

  • • A eletricidade total usada foi estimada em 19,6 TWh (Terawatt-hora), com emissões de GEE associadas de 10,1 MtCO2e - aproximadamente comparável às emissões de uma áreas urbanas inteiras como as de Frankfurt, Quito ou Bruxelas.

  • • Os resultados incluem a economia de 116 Kt CO2e com a compra existente de energia 100% renovável do Google para atividades de datacenter.

  • • A Figura ao lado do texto apresenta a estimativa de uso de eletricidade associada ao uso do YouTube em 2016, dividida nos principais componentes do sistema.

Uma das intervenções propostas para reduzir o impacto ambiental dos serviços digitais inclui a identificação e eliminação do ‘desperdício digital’, como a prática de usar streaming de vídeo, em segundo plano, como uma fonte de áudio.

A intervenção considerou apenas vídeos de músicas, assumindo a redução de 10%, 25% e 50% do conteúdo de imagens transmitidas nestes casos. Os cenários permitiram uma economia de emissões de 117, 293 e 586 Kt CO2e, respectivamente. Ou seja, se as pessoas que estão apenas ouvindo vídeos não tiverem imagens em exibição, haverá reduções massiva das emissões de GEE.

O estudo apresentado neste artigo é um dos exemplos de como a Avaliação do Ciclo de Vida pode apoiar o caminho para uma transformação digital mais ambientalmente sustentável. Mais exemplos da aplicação da ACV nos serviços digitais podem ser encontrados no artigo sobre o Fórum publicado na International Journal of LCA e nas apresentações realizadas no 73º Fórum de Discussão sobre Avaliação do Ciclo de Vida.